Mercado livre desestruturou o setor de energia brasileiro

O governo anunciou na última quinta-feira um pacote de R$ 12 bilhões para socorrer as empresas de distribuição de energia elétrica, a pretexto de evitar que os impactos da “forte estiagem” cheguem ao consumidor ainda este ano. No entanto, o engenheiro eletricista Roberto D’Araujo, diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético (Ilumina), atribui os desequilíbrios entre oferta e demanda de energia, não à estiagem, mas a fatores estruturais e ao excessivo uso das hidrelétricas, para evitar, sem sucesso, o acionamento das caras e poluentes termelétricas. Tanto que a participação destas na geração dobrou bruscamente, atingindo 20% em setembro de 2012.

“O uso da hidrelétrica também faz baixar os reservatórios. E parece inegável que, se entre 2001 até 2012 (11 anos), o padrão de atendimento energético era 10% da carga suprida por térmicas e 90% hidráulicas, num certo mês de 2012 (setembro), o padrão passa a ser: térmicas 20%, hidráulicas 80%”, diz.

Com esse padrão, D’Araujo não crê que, após as eleições, o Tesouro Nacional continue aportando recursos no setor, ficando a conta para o consumidor. E lembra que, nos leilões realizados recentemente, após a energia ter caído a preços muito inferiores ao custo em passado recente (R$ 12 e até R$ 6), o preço do MW/h atingiu o pico histórico R$ 823 no mercado de curto prazo. “O Tesouro não vai ficar cobrindo os desequilíbrios do setor indefinidamente. Inevitavelmente a tarifa vai explodir”, projeta, em entrevista exclusiva ao MM.

Para o diretor do Ilumina, o principal causador do desequilíbrio estrutural no setor é o modelo batizado de “mercado livre”, mas que, na verdade, privilegia os grandes comercializadores de energia. E, segundo o especialista, ele “não é compatível com o nosso sistema físico”.

Quem perdeu, e quanto se perdeu, com o MW/H comercializado a R$ 12?

O buraco decorrente do modelo mimetizado já chega a R$ 30 bilhões, a Eletrobras está praticamente falida e ninguém vai ao centro do problema. As garantias físicas de todas as usinas do sistema estão infladas. Faltam usinas. O preço praticado no mercado livre é artificial. Não corresponde à mecanismos de oferta e demanda genuínos. Ali é possível assistir, passivamente, o mwh ser liquidado por R$ 6 e alguns meses após, custar R$ 822. O mwh a R$ 6 não existe em nenhum mercado spot do planeta.

Poderia citar uma das causas para a Eletrobras estar ‘praticamente falida’?

De 2003 até meados de 2007, quem ‘patrocinou’ o festival de preços baixos foram as empresas do grupo, que, descontratadas, apesar de terem preços mais baixos, foram proibidas de buscar alternativas no mercado livre, cabendo a elas apenas a geração da energia quase gratuita.

O que poderia ser feito para corrigir o desequilíbrio estrutural no setor?

Bastaria não permitir que agentes consigam comprar energia abaixo do custo de produção para ter um fundo que pagasse os períodos de seca. Mas o mercado livre é secreto. Para consertar isso é preciso ir à raiz do modelo. O que está implantado não é compatível com o nosso sistema físico.

Pode estar havendo retração proposital dos investimentos, por parte das empresas privadas, para forçar elevação de tarifas, como teria ocorrido na Califórnia, Estados Unidos?

Não creio. A filosofia do governo é de leilões genéricos. O sistema brasileiro não é térmico, que permite venda imediata. O governo incentivou as térmicas, mas a energia delas é cara, empurrando a demanda para as hidráulicas, cada vez mais exigidas. Esse é o problema, e não a falta de chuvas: maior uso das hidráulicas para evitar as térmicas, pois o reservatório esvazia também pelo uso.

Além do preço e do problema da contratação de térmicas a óleo e diesel, o que não é padrão mundial, há outra objeção do uso crescente dessas usinas?

Poderíamos mudar os critérios e passar a usar as térmicas com mais freqüência. O problema é que, se isso for adotado, todas as garantias físicas de todas as usinas do sistema precisariam ser revistas para baixo, pois elas dependem desse critério de operação. Então o Brasil pode usar energia térmica, mas a tarifa brasileira é tão cara que colocar mais mwh térmico na base pode explodir a tarifa ainda mais.

A MP 579, que reduziu os preços das tarifas em 2013, estaria, então, fadada ao fracasso?

A MP 579 nada mais é do que o atendimento pleno das exigências dos setores eletro-intensivos, o inverso do apregoado em 2002. Enquanto isso, as distribuidoras, em polvorosa, não sabem como vão suportar as contas bilionárias, que podem chegar a quase R$ 20 bilhões só em 2014, recurso comparável à construção da usina de Santo Antônio.

A ‘ajuda’ do Tesouro, como não vem de Marte, um dia terá de ser paga, pois não há justificativa desse subsídio num país com tantas carências. Será impossível o Tesouro cobrir. Teremos de pagar. A tarifa vai explodir. A relação da MP 579 com tudo isso é que a intervenção nas tarifas das usinas foi insuficiente para alterar o caminho de encarecimento da energia que vamos trilhar. Serviu apenas para incentivar ainda mais o consumo nos empurrando para o mwh a R$ 822 ou ao mwh que não vai ter.

E quanto à diminuição da capacidade dos reservatórios?

O sistema apresenta lenta diminuição da sua capacidade de estoque, uma variável essencial para qualquer estratégia energética, mas a complementação térmica adotada foi totalmente insensível a esse fenômeno. Nossa expansão poderia ter acrescentado mais usinas a fio d’água, pois, apesar de não aumentarem a reserva, elas capturam crescentemente mais afluências para serem transformadas em energia.

Infelizmente, parece que isso também não foi feito e o indicador mais significativo é o nosso baixo nível de vertimento (jogar água pelo vertedouro). Ou seja, mesmo com afluências 20% acima da média, (2011), nosso percentual de vertimento (obrigatórios + eventuais) é muito baixo.

Então não conseguimos nem encher os reservatórios?

Exato. Com reservatórios menores, as usinas são mais dependentes das chuvas para produzir grande quantidade de energia. Um exemplo é o do Rio Madeira, em Rondônia, onde estão sendo construídas as hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau. Sua vazão pode variar de 6 mil metros cúbicos por segundo (em época de estiagem) a 45 mil (em período de cheia).

As usinas de Santo Antonio e Jirau, no Rio Madeira, podem causar inundações superiores ao pico dos últimos cem anos na região. Ao construir hidrelétricas a fio d’água, com reservatórios menores, por pressão dos ecologistas, pode-se ter criado um problema maior do que o que se pretendia evitar?

Não tenho certeza se as inundações são por causa dos reservatórios. Mas os reservatórios diminuem a velocidade da água e o Rio Madeira fica numa região de corredeiras. Diminuir a velocidade delas provoca alagamentos. Há bordas do Rio Madeira desmoronando após as usinas.

E há outros problemas. É feito um estudo de queda para não ocorrer que uma usina afogue a outra, mas parece que isso está acontecendo: Santo Antônio afoga Jirau e a Eletrobras é sócia das duas.

Fonte: Monitor Mercantil – 14/03/2014

 

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