Desafios para o mercado elétrico brasileiro

O Ministério de Minas e Energia iniciou o processo de reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro (SEB) com a Consulta Pública para o Aprimoramento do marco legal do setor elétrico. O documento formula propostas em três linhas distintas, quais sejam, 1- destravar a judicialização do setor, oferecendo soluções que viabilizem a retirada das ações judiciais que questionam as regras atuais; 2- aprimorar o setor elétrico para o advento das novas tecnologias; e 3- lançar bases para a privatização de ativos das estatais federais.

 

Entretanto, na opinião dos autores, ainda não foram contempladas medidas para reduzir o altíssimo risco financeiro na comercialização de energia, que é fonte primária de muitos dos atuais problemas do setor.

 

O SEB enfrenta sérios problemas e desequilíbrios derivados da crise hidrológica, iniciada em outubro de 2012. A má hidrologia gerou uma sucessão de crises financeiras, as quais obrigaram o governo a adotar diversas inovações regulatórias para evitar uma insolvência generalizada, destacando-se: 1- o aporte de recursos do Tesouro Nacional na Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) para financiar as distribuidoras; 2- a criação da "Conta ACR" para securitizar os aumentos futuros da conta de luz e lastrear empréstimos para a quitação de compromissos das distribuidoras; 3- a redução do teto do Preço de Liquidação de Diferenças (PLD); 4- a instituição das bandeiras tarifárias; e 5- a repactuação do risco hidrológico de contratos entre geradores hídricos e distribuidoras.

 

Na busca das causas centrais de uma longa sequência de crises financeiras, é possível identificar três problemas estruturais da comercialização de energia, os quais ainda devem ser contemplados no atual aprimoramento do modelo do setor, examinados em seguida.

 

Formação de preços: Boa parte das agruras da comercialização de energia no atacado decorrem da disfuncionalidade do PLD, preço de curto prazo formado por modelos computacionais. O PLD é altamente volátil e, pior, raramente se aproxima dos custos de produção de energia elétrica ou dos preços dos contratos em prazos mais longos. Além disso, ele não serve de base para decisões de investimento e, na maioria dos casos, sequer é capaz de pautar decisões de curto prazo dos agentes. Deste modo, no desenho do mercado atual, o PLD é uma fonte de risco com rarefeita funcionalidade econômica.

 

Risco elevado e sistêmico: Para contornar a extrema volatilidade do PLD, o modelo atual induz os consumidores à contratação da energia em prazos longos. No entanto, tais contratos são puramente financeiros e não influenciam o despacho físico das centrais elétricas, o qual é definido pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). O descasamento entre os contratos e a geração efetiva cria riscos financeiros, pois os agentes têm que cobrir eventuais diferenças entre o que foi inicialmente contratado e as medições reais de energia, ficando expostos ao PLD.

 

O risco da comercialização de energia tem uma característica claramente sistêmica e, em situações de seca, há sempre muitos agentes expostos ao PLD em valores muito altos, como temos comprovado amargamente na prática, desde 2013. Este descasamento tem determinado desequilíbrios financeiros na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), que apresenta altos volumes de inadimplência há anos. Ainda hoje, mais de quatro anos após o início da crise hidrológica, a CCEE permanece com uma inadimplência de R$ 1,6 bilhão.

 

Sistema de pagamentos e de garantias: O mercado de energia brasileiro funciona hoje sem supervisão de risco e carece de um sistema de pagamentos e garantias robusto. A contratação se dá de forma bilateral, com a cessão de recebíveis no caso dos contratos com distribuidoras e com garantias livremente pactuadas no caso do mercado livre. Na liquidação de diferenças na CCEE, justo onde se manifesta o risco sistêmico, é utilizado um modelo de compartilhamento do risco de inadimplência entre os credores, amparado por um sistema de garantias muito fraco.

 

Os três problemas apontados acima têm um caráter estrutural e, por isso, as soluções não são triviais e de rápida implantação. Nota-se que a superação destas questões pode explorar dois vetores.

 

Em primeiro lugar, o parque gerador brasileiro tem estrutura de custos fortemente centrada em custos fixos, logo os custos de geração de energia elétrica pouco variam. Como o predomínio de custos fixos já está refletido no desenho dos contratos regulados de longo prazo, é possível adotar uma abordagem financeira para formação de preços, redesenhando o mercado para que o preço percebido pela maioria dos agentes tenda a convergir para os custos dos contratos. Esta abordagem reduziria a volatilidade do preço de curto prazo da energia a uma pequena fração do que é atualmente, diminuindo o nível de risco do sistema, criando valor para todos os envolvidos.

 

Em segundo lugar, o setor elétrico deveria aproveitar o fato de o Brasil ter uma regulação financeira internacionalmente reconhecida como muito robusta e adotar o Sistema de Pagamentos Brasileiro, regulado pelo Banco Central, para a cadeia de pagamentos da comercialização de energia no atacado. Afinal, o sistema financeiro brasileiro já dispõe hoje das infraestruturas, dos produtos (mercados futuros) e da supervisão de risco adequados para prover uma base altamente confiável que pode perfeitamente ser usada para as transações do mercado elétrico.

 

Os problemas financeiros estruturais do setor aqui examinados precisam ser enfrentados. Há que se destacar, porém, que a tarefa de aperfeiçoar o modelo atual de comercialização afeta expectativas associadas a vultosos contratos de longo prazo já firmados pelos agentes, tendo que ser conduzida com cuidado e dentro de um ambiente de discussão aberta.

 

Nivalde de Castro é professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do Gesel-UFRJ (Grupo de Estudos do Setor Elétrico).

 

Roberto Brandão é pesquisador sênior do Gesel-UFRJ

 

Fonte: Valor Econômico.

 

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